16 de Março de 1897

Caro Vito,
tivesse eu alguma saúde, juro, juro! não permaneceria aqui sentado, rodeado de todos esses livros e de todas essas obrigações ordinárias que cercam minha vida. Tenho pensado no mar e na sua vastidão. Tenho pensado o quão pequeno nos tornamos à medida que a vida passa, à medida que envelhecemos e deixamos de fazer tudo o que nossa alma deseja e almeja. Somos fracos perante a força do tempo, somos irrisíveis e patéticos; e no entanto, nos cobrimos de um orgulho vasto que nem mesmo as formigas compreendem. Tenho pensado nas flores, estes seres tão frágeis e tão belos, e fico a pensar o que pensam as flores sobre sua própria efemeridade. E constato que as flores pensam tão somente nas flores que virão. Bem sabes, Vito, que todo o amor que carrego, dediquei as criaturas de Deus, embora muitas vezes essas não soubessem retribuir tal sentimento. Não me sinto de forma alguma desprezado, ou esquecido, mas sinto-me incompleto, pela metade. Quantas foram as vezes que tentei dizer tudo o que o meu coração pretendia e na hora de abri-lo, pela boca escapou-me não mais do que ar? E apesar de todo o meu orgulho de homem consciente, nunca abri mão do misticismo que dá algum sentido a nossa passagem por aqui. Que será feito de nós, que acreditamos na bondade dos homens? Já não me incomoda o esquecimento. Na verdade, ele tornou-se para mim uma sensação de conforto. Percebo a irrelevância de nossos atos, caro amigo, e contra isso não podemos lutar. Enquanto escrevo, minha ajudante esquenta água para que eu possa tomar o meu chá - recomendação médica - e fico pensando nessa criatura que me serve. É uma jovem tímida, calada, mas de uma bondade incomensurável, e de certa forma isso é um acalanto para minha alma. Não tem filhos, tão pouco namorado e dedica grande parte do seu tempo a estar aqui, me servindo de bengala, velando minha debilitada figura. Não tenho palavras para lhe agradecer, pois todos elas seriam inócuas e mentirosas. E fico a refletir sobre sua dedicação, e sobre o seu futuro; que sã criatura dedicaria sua juventude a cuidar de um velho doente que já não tem forças para erguer a voz? Sinto que te canso, caro amigo. Meus pensamentos não seguem mais uma linha reta, meus pensamentos hoje são pontilhados, cheios de falhas e lacunas e essa é impressão que tenho da vida também, cheia de falhas e lacunas. De resto tudo continua o mesmo. Planejava fazer uma visita a meu irmão, mas as dores não permitem muitas vezes que eu saia da cama, e uma viagem longa como essa, seria penoso demais para mim. Mande lembranças a Catarina e as crianças

Do teu amigo

Bernard