03 de Maio de 1897

Caro amigo,
lendo tua carta não pude deixar de pensar nos aúreos dias de minha mocidade. Cheguei a sentir minhas retinas se confrangerem e minhas pupilas se amiudarem, como a tentar enxergar a vida daqueles tempos. Em vão. Hoje padeço da pior das doenças, e da pior das verdades: aos poucos, meu caro, a solidão me mata. Mas nem por isso deixo de fazer minhas leituras, minhas anotações, embora, cada dia que passe, seja mais doloroso encarar essa realidade que se derrama sobre mim como a mais torturante de todas as épocas de minha vida.
Desde o dia em que deixei Cecília, minha vida jamais foi a mesma. Entenda, Vito, não te quero importunar com minhas reminiscências e minha melancolia velhota. Quando nos vemos perto do fim, algumas palavras aprisionadas no peito e na mente devem ser libertadas para alçarem vôo, para ganharem a imensidão, e não terminarem no esquecimento pútrido de um corpo sem vida. Invejo-te. Passados vinte e cinco anos de meu último encontro com Cecília, ainda sonho com ela. E o estranho é que já não sonho a Cecília jovem, radiante, que conheci e que amei como sendo a mim mesmo. Não. Hoje sonho a Cecília velha, vivida, sentada ao meu lado, cansada como eu da vida, embora, contudo, feliz. Invejo-te. Tens contigo a mulher que amas, mãe dos teus filhos, senhora de tua casa e de teu coração. Não, não, por favor, não faça julgamentos errados sobre mim. Invejo-te e admiro-te. O desabafo tem sido minha única expressão. E quando penso que fiz tudo errado, que a abandonei por ganância e presunção, é como se toda a vida que me circunda se constituisse da matéria mais mentirosa, mais desagradável possível. Sou isso que lês, meu caro, a farsa da conquista, o triunfo do vazio, a negação de tudo quanto reside na paz e na alegria. Invejo-te, pois hoje percebo-me obssecado pelo tempo que perdi, pela mulher que só amei. Cecília, ó, querida Cecília, eras tua minha única riqueza. Invejo-te, Vito, pois toda a minha vida desejei o sucesso, a riqueza, o conforto e o luxo. Durante toda a minha vida foram essas as minhas metas. Ah, que objetivos torpes, meu amigo. Invejo-te e aconselho-te: não pense fazer de tuas tarefas o fim imediato de tua vida, nem acredite que elas possam servir para teu luxo e tua satisfação. A felicidade reside na mais miúda ação, enquanto nela se observar toda e qualquer falta de intencionalidade.
Tenho tratado de minha doença. Houveram melhoras, mas não há remédio para um coração vencido pela tristeza. Penso em Cecília, como penso no mar. Tens a sorte de conviver com esse, logo ali, através da tua janela. Eu apenas carrego dele a vastidão líquida e desértica. Ultimamente, tenho podido andar com mais desenvoltura. Minha ajudante, desde que dei sinais de melhora, tem aparecido menos. Laico tem me feito companhia pelo jardim, assim como a bengala. Precisas ver como andam minhas flores, principalmente, as margaridas. Ando fumando menos. Outro dia recebi uma encomenda. Meu irmão me mandou uma caixa de cubanos. Logo depois da primeira baforada, Laico se pôs a latir. É meu amigo, algumas coisas não mudam. Lembranças a todos


.Do teu

Bernard

06 de Abril de 1897

Amigo Ber,
fiquei realmente contente com tua carta. Quanto tempo que não escrevias? Sempre é bom receber palavras tuas. Vejo que estás bem amparado por essa jovem ajudante, e isso é o mínimo que podias receber depois de vida tão profícua e dedicada ao teu ofício. Perceba: o mar, este o qual olho todo santo dia depois de acordar, parece a mim tão indiferente a tudo, tão distante de qualquer sentimento humano, que não tenho tempo para pensá-lo. Da mesma forma, as flores que desabrocham no jardim. Sou pai de família, tenho esposa para cuidar, filhos para educar e uma centenas de outros pormenores que realizar durante o dia. Não sinto o tempo. Não o vejo. Meu rosto, apesar de possuir já suas marcas indeléveis, me parece o mesmo da juventude. Não há espaço em minha vida para melancolia, vivo plenamente. Cumpro minhas obrigações com o mesmo afinco que as abelhas protegem sua rainha. É bonita demais a vida para perder-me em divagações que não me levaram a lugar algum. Me compraz olhar meus filhos crescerem, como o trigo que irrompe a terra em busca de um raio de sol para poder ganhar em beleza e tamanho. Não te apequenes, velho amigo, tua existência não será esquecida. Ergue teus braços e agradece, pois a doença de que te queixas, não é de maneira nenhuma um castigo. Não fostes ainda mandado ao céu, nem ao inferno, ânimo, pois é disso que todos nós precisamos: ânimo. Tua bondade é indiscutível, e não lamenta um instante sequer não ter sido compreendido. O amor que carregas nunca precisou de resposta, sempre soube a si mesmo. Tenha paciência, Ber, paciência.
E tuas margaridas e tuas violetas como estão? E o velho Laico, ainda late para a fumaça do teu charuto? Aliás, continuas fumando? Bom, todos aqui esperamos que possas melhorar e fazer-nos uma visita breve. O quarto de hóspedes tem agora o velho piano de Catarina, onde poderás exercitar tuas mãos leves e ligeiras.
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Abraços afetuosos
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Vito

16 de Março de 1897

Caro Vito,
tivesse eu alguma saúde, juro, juro! não permaneceria aqui sentado, rodeado de todos esses livros e de todas essas obrigações ordinárias que cercam minha vida. Tenho pensado no mar e na sua vastidão. Tenho pensado o quão pequeno nos tornamos à medida que a vida passa, à medida que envelhecemos e deixamos de fazer tudo o que nossa alma deseja e almeja. Somos fracos perante a força do tempo, somos irrisíveis e patéticos; e no entanto, nos cobrimos de um orgulho vasto que nem mesmo as formigas compreendem. Tenho pensado nas flores, estes seres tão frágeis e tão belos, e fico a pensar o que pensam as flores sobre sua própria efemeridade. E constato que as flores pensam tão somente nas flores que virão. Bem sabes, Vito, que todo o amor que carrego, dediquei as criaturas de Deus, embora muitas vezes essas não soubessem retribuir tal sentimento. Não me sinto de forma alguma desprezado, ou esquecido, mas sinto-me incompleto, pela metade. Quantas foram as vezes que tentei dizer tudo o que o meu coração pretendia e na hora de abri-lo, pela boca escapou-me não mais do que ar? E apesar de todo o meu orgulho de homem consciente, nunca abri mão do misticismo que dá algum sentido a nossa passagem por aqui. Que será feito de nós, que acreditamos na bondade dos homens? Já não me incomoda o esquecimento. Na verdade, ele tornou-se para mim uma sensação de conforto. Percebo a irrelevância de nossos atos, caro amigo, e contra isso não podemos lutar. Enquanto escrevo, minha ajudante esquenta água para que eu possa tomar o meu chá - recomendação médica - e fico pensando nessa criatura que me serve. É uma jovem tímida, calada, mas de uma bondade incomensurável, e de certa forma isso é um acalanto para minha alma. Não tem filhos, tão pouco namorado e dedica grande parte do seu tempo a estar aqui, me servindo de bengala, velando minha debilitada figura. Não tenho palavras para lhe agradecer, pois todos elas seriam inócuas e mentirosas. E fico a refletir sobre sua dedicação, e sobre o seu futuro; que sã criatura dedicaria sua juventude a cuidar de um velho doente que já não tem forças para erguer a voz? Sinto que te canso, caro amigo. Meus pensamentos não seguem mais uma linha reta, meus pensamentos hoje são pontilhados, cheios de falhas e lacunas e essa é impressão que tenho da vida também, cheia de falhas e lacunas. De resto tudo continua o mesmo. Planejava fazer uma visita a meu irmão, mas as dores não permitem muitas vezes que eu saia da cama, e uma viagem longa como essa, seria penoso demais para mim. Mande lembranças a Catarina e as crianças

Do teu amigo

Bernard